26/05/2015 14h00

A terceirização dos serviços de saúde no Brasil

Desde a promulgação da Constituição Federal da República em 1998, o Estado Democrático de Direito Brasileiro vem sofrendo constantes mutações. Nesse cenário, surgem a cada dia novos modelos de participação dos particulares na administração da coisa pública, tais como as parcerias público-privadas, as concessões administrativas, os consórcios públicos e as entidades paraestatais.

Nos últimos anos, muito se tem discutido sobre a participação complementar de entidades paraestatais sem fins lucrativos, tais como as Organizações Sociais (OS) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), nos serviços de saúde pública, conforme permissivo disposto no art. 199 da CF/88.

Isso porque, se tornou prática corriqueira no país a transferência da gestão, operacionalização e execução dos serviços de saúde pública para entidades privadas.

A grande discussão reside na inconstitucionalidade e ilegalidade da transferência integral da saúde pública para essas entidades privadas, na medida em que CF/88 e a Lei Orgânica da Saúde de n° 8.080/1990 autorizam apenas a sua transferência complementar:

Constituição Federal da República de 1998:
“Art. 30. Compete aos Municípios:

(…)

VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;” (BRASIL, 1998)

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (BRASIL, 1998)

“Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

(…)

  • 1º – As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.” (BRASIL, 1998)

Lei 8.080/90:

Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde-SUS poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.

Parágrafo único. A participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público.” (BRASIL, 1990)

A Lei n° 8.080/1990 trata expressamente da complementariedade da atuação da iniciativa privada nos serviços públicos de saúde, nas hipóteses em que a estrutura pública for insuficiente para atender a população de determinada região, vedando, por consequência, sua atuação de forma substitutiva.

Entende-se por participação complementar a execução de atividades classificadas como atividades-meio da administração pública, e não daquelas classificadas como atividades-fim. Nesse contexto, o Estado poderia delegar, por exemplo, a prestação de serviços técnicos especializados, tais como mamografias, radiografias e exames clínicos, mas não poderia transferir a gestão completa de um hospital ou unidade de atendimento a uma entidade privada.

No entanto, não e isso o que vem ocorrendo no Brasil. Diversos municípios, especialmente aqueles menores ou com baixa renda, vem reiteradamente terceirizando os serviços de saúde às Organizações Sociais, cuja atuação passa a ser integral e não complementar conforme autorizam a CF/88 e a Lei n° 8.080/1990.

A transferência total da prestação dos serviços de saúde pública a entidades privadas, além afrontar a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Saúde, ainda contraria os ditames da Lei n° 9.637/98, que dispõe sobre a qualificação de entidades privadas como Organizações Sociais:

“Art.5 Para os efeitos desta Lei, entende-se por contrato de gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1o.” (BRASIL, 1998)

Nos termos do referido dispositivo legal, resta claro que os contratos de gestão devem ser firmados com vistas à formação de uma parceria da Organização Social com o Poder Público, e não objetivando a substituição do Estado em suas atividades-fim.

Ademais, a transferência integral dos serviços de saúde pública para as entidades privadas ainda esbarra em outra inconstitucionalidade: burla à realização de concurso público para a contratação dos profissionais da saúde, em total afronta ao disposto no artigo 37, caput e inciso II, da CF/1988.

Nos termos da Carta Magna, o ingresso em cargo ou função pública, seja na administração pública direta ou indireta, depende de prévia aprovação em concurso de provas ou de provas e títulos, excetuando-se à regra apenas os casos de contratação para os cargos em comissão, que são preenchidos por livre nomeação e exclusivos para as atribuições de direção, chefia e assessoramento.

Entretanto, a contratação dos profissionais de saúde pelas entidades privadas que possuem a gestão e execução integral da saúde pública em diversos municípios não vem observando a regra constitucional mencionada acima.

Diante disso, entidades de defesa do cidadão e de profissionais da saúde vem reiteradamente manejando ações judiciais visando a suspensão e interrupção dos contratos celebrados com pessoas jurídicas de direito privado e que tenham como objeto a terceirização dos serviços públicos de saúde, em decorrência da corriqueira contratação de profissionais da área sem a realização de concurso público.

Um caso emblemático nesse cenário é o Mandado de Segurança de n° 2000.001.048041-8, impetrado pelo Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro em face do Secretário Municipal de Saúde. Na exordial, o Sindicato alegou que a Secretaria Municipal de Saúde publicou edital de licitação para contratar entidades privadas para executarem atividades-fim do Município nas Unidades Auxiliares de Cuidados Privados (UACPC), contratação essa que afrontaria ao art. 37, inciso II, da Constituição Federal da República em razão do ingresso de profissionais em cargo público sem a realização prévia de concurso.

A sentença proferida julgou procedentes os pedidos do Sindicato e declarou a ilegalidade do ato administrativo, determinando a anulação da licitação que culminou na contratação de uma Cooperativa para a prestação dos serviços públicos de saúde no Município. O Município do Rio de Janeiro recorreu da sentença, mas o Tribunal de Justiça manteve a decisão e afirmou que o serviço de saúde pública é essencial e não pode ser terceirizado. Veja-se, abaixo, trecho do acórdão proferido:

O serviço público de saúde não pode, e não deve, ser terceirizado, admitindo o art.197 da Constituição Federal, em caráter complementar, permitir a execução dos serviços através de terceiros. O caráter complementar não pode significar a transferência do serviço à pessoa jurídica de direito privado.” (AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 445.167 RIO DE JANEIRO RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO 28/08/2012 DJe 19/09/2012)

Em face do referido acórdão o Município do Rio de Janeiro interpôs Recurso Especial e Recurso Extraordinário. O Recurso Especial teve seguimento negado. Da mesma forma, o Relator Ministro Carlos Ayres Brito negou seguimento ao Recurso Extraordinário, destacando que a regra das contratações é o concurso público:

“A administração pública direta e indireta, ao prover seus cargos e empregos públicos, deve obediência à regra do concurso público. Admitem-se somente duas exceções, previstas constitucionalmente, quais sejam, as nomeações para cargo em comissão e a contratação destinada ao atendimento de necessidade temporária e excepcional.” (RE 445167 RJ RELATOR CARLOS AYRES BRITO JULGAMENTO 18/12/2009 PUBILCADO DJe 026 DIVULG 10/02/2010 PUBLIC 11/02/2010)

O Município do Rio de Janeiro ainda interpôs Agravo Regimental contra a decisão que negou seguimento ao Recurso Extraordinário, ao qual o Ministro Relator Cezar Peluso negou seguimento ao fundamento de ser entendimento da Corte a impossibilidade da prestação de serviços públicos por profissionais não concursados:

“[…] os cargos inerentes aos serviços de saúde, prestados dentro de órgãos públicos, por ter a característica de permanência e ser de natureza previsível, devem ser atribuídos a servidores admitidos por concurso público, pena de desvirtuamento dos comandos constitucionais referidos.
[…] é certo que o texto constitucional faculta, ao Estado, a possibilidade de recorrer aos serviços privados para dar cobertura assistencial à população, observando-se, as normas de direito público e o caráter complementar a eles inerentes. Todavia, não é essa a discussão aqui travada, mas sim, a forma como a Municipalidade concretizou o ato administrativo, emprestando-lhe característica de contratação temporária, desvirtuada do fim pretendido pelo artigo 197 da CF/88. Na hipótese, os serviços contratados não podem ser prestados em órgãos públicos, onde necessariamente, deveriam trabalhar profissionais da área de saúde, aprovados em concurso público, a teor do artigo 37, II, da CF/88 (fls. 422/423).”
(AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 445.167 RIO DE JANEIRO, RELATOR MIN. CEZAR PELUSO, 28/08/2012 DJe 19/09/2012)

Seguindo a linha do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, outras entidades propuseram ações contra a terceirização do serviço público de saúde .

É claro que essas transferências realizadas pelo Poder Público, além de não permitida pelo ordenamento pátrio, caracteriza burla à forma legal de ingresso de servidores no serviço público de saúde, qual seja, o concurso público, o que infringe gravemente o artigo 37, caput e incisos II e IX da Constituição Federal.

Neste sentido, o Poder Judiciário tem respondido a tais ações de forma unânime, ratificando o que dispõe a legislação pátria: a saúde é dever do Estado e não pode ser terceirizada à iniciativa privada.

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